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Joyland: Repressão e Libertação no Paquistão


A família é um lugar seguro. É onde encontramos segurança e amor, e é onde estão aqueles mais próximos de nós. Mas a família também tem outra face. Uma menos simpática, onde os mecanismos de opressão presentes na sociedade se manifestam e nos confinam. O seio da família é o primeiro lugar onde se reflete a opressão social, mas também é o primeiro lugar onde pode ser combatida. Através deste filme, elegantemente filmado, Saim Sadiq expõe esta realidade, revelando o drama que se desenvolve no seio de uma família paquistanesa e a forma como as diferentes pessoas dentro desta família são afetadas pelo seu ambiente claustrofóbico, focando no casal central de Joyland, Haider e Mumtaz, e no caso amoroso entre o primeiro e Biba, uma performer trans que trabalha num teatro erótico.

Desde o primeiro momento, Sadiq puxa o espectador para o ambiente caloroso e claustrofóbico da família, fazendo com que nos identifiquemos com estas pessoas que observamos. São personagens em que se sente a carne e osso, sentindo-se as suas angústias, as suas ambições, as suas paixões, os seus medos, a sua dor, as suas constrições. Este efeito é alcançado através da intensidade com que as imagens são capturadas, a abarrotar de belíssimas cores quentes ao mesmo tempo que revelam um fechamento a possibilidades fora do paradigma tradicional. Esta intensidade na forma como a vida é capturada é igualmente transportada para o romance entre Haider e Biba, a sua paixão explodindo no grande ecrã de uma forma infecciosa, sendo impossível não sentir o calor deste amor ardente que se acende entre os dois, tal como é transportada para o retrato de desespero sexualmente reprimido de Mumtaz, enquanto esta luta contra a prisão da sua feminidade dentro de uma sociedade que apenas a vê como uma dona de casa e nada mais.

Esta intensidade não é só transmitida ao espectador através da cinematografia vívida de Joyland. É também transmitida através das interpretações estonteantes que se apresentam neste filme, cada ator brilhando no dilema que afeta a sua personagem dentro desta sociedade assombrada de contradições. Ali Junejo incorpora com uma sensibilidade tremenda a tormenta dentro do protagonista masculino, dominando a empatia do espectador, estando entre duas interpretações femininas incríveis de Rasti Farooq, que transmite de modo quase intolerável a luta trágica e aflitiva de Mumtaz, e Alina Khan, que incorpora a liberdade e irreverência que envolve a personagem de Biba.

A personagem de Biba é a força que guia o filme, muito pela performance brilhante de Khan. É o elemento que inquieta os pilares de uma sociedade heteronormativa conservadora, fazendo estes tremerem apenas com a sua existência. Através do romance entre ela e Haider, algo é alterado e questionado dentro das normas e estruturas da sociedade. Através deste romance ilícito, estruturas são quebradas e beleza é revelada – beleza essa que é reprimida, e que também potencia tragédia. E é através disto que Joyland se torna numa história poderosamente queer, celebrando histórias e vidas que põem a sociedade tradicional em causa – algo certamente tornado ainda mais forte pelo contexto da sociedade paquistanesa.

Apesar de Joyland acabar por ser um filme de natureza trágica, beleza e poesia acabam por serem encontradas dentro da dor que constringe o filme. Apesar da regressão causada pela tragédia, o amor queer que é apresentado abala os pilares do conservadorismo que tentam dominar, não só pessoas LGBTQ+ e mulheres, mas todos os que vivem sob a sua sombra, abalando até a família nuclear que está na sua base.

Através deste filme, Saim Sadiq apresenta-se como um cineasta extremamente capaz, produzindo imagens hipnoticamente belas e construindo uma narrativa poeticamente trágica ao mesmo tempo que é libertadora. Joyland guarda em si uma esperança que brilha entre as ondas de um mar de adversidade e opressão e, no fim, dá-nos força através da sua poesia comovente. Joyland estreou no Festival Queer Lisboa 2022, e foi o filme vencedor do Prémio do Público, assim como também de uma Menção Honrosa por parte do Júri do Festival.

Classificação: 5 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.
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