Avançar para o conteúdo principal

Fogo-Fátuo: Um delírio absurdamente queer


Fantasia e delírio. Desde o primeiro momento somos confrontados com o absurdo que permeia esta autointitulada fantasia musical de João Pedro Rodrigues. Uma lembrança fantasiosa de uma vida imaginada de um príncipe, de nome Alfredo, que decide ser bombeiro. Não um mundo realista, mas um imaginado, um mundo sonhado que emana a mais intoxicante, alucinante e deliciosa queerness.

Fogo-Fátuo é um filme que nos desafia, mas, através do absurdo, nos seduz para o seu mundo intimamente pessoal. É um musical, uma fantasia, uma sátira, um humor ácido e deliciosamente queer que envolve cada momento, desde comentário sobre as alterações climáticas a imagens eróticas de bombeiros saídos de uma fantasia sexual gay. Nada está a salvo de uma visão irónica neste filme, e é isso que o torna tão impactante. Seja o romance do filme, o erotismo dos corpos masculinos que habitam este mundo de fantasia, a própria masculinidade, tudo é distorcido por uma visão irónica do mundo que coloca as suas estruturas em causa. A ironia cáustica também eleva o seu comentário político, apresentando uma queerness destemida e desenfreada em todos os seus aspectos, não tendo medo de deixar o espectador desconfortável, tal como é já expectável de João Pedro Rodrigues.

Sendo uma comédia satírica, Fogo-Fátuo é inegavelmente belo, apresentando vários momentos verdadeiramente hipnotizantes. A recriação de obras de arte com o corpo nu ou quase nu de bombeiros, não só representa a visão absurda do filme como também manifesta uma beleza tremenda que domina a fotografia deste. O jogo entre absurdo e belo é o que move o coração de Fogo-Fátuo e o torna num filme cativante. Tanto a cinematografia de Rui Poças, altamente calculada e infindavelmente bela, como a coreografia de Madalena Xavier complementam o absurdo do argumento e realização de Rodrigues, criando e celebrando um mundo queer. O que se materializa é uma visão verdadeiramente queer de uma forma que raramente se vê. O humor absurdo do filme é elevado pelas performances brilhantes dos actores, com destaque para André Cabral e Margarida Vila-Nova, esta última que rouba completamente o tempo de ecrã limitado que tem, sendo dos elementos mais memoráveis deste filme.

Apesar de certas superficialidades que o argumento apresenta, principalmente sobre questões raciais e coloniais que podiam ter sido mais bem desenvolvidas, Fogo-Fátuo é um filme que nos deixa estonteados com a sua força fantasiosa, envolvendo-nos num delírio queer e profundamente português. Neste delírio louco, surge algo de refrescante no cinema português: um mundo cinematográfico e uma imagem absurdamente e desenfreadamente queer e deliciosamente camp.

Classificação: 4 em 5 estrelas. Texto escrito por Jasmim Bettencourt.
Fogo-Fátuo: Um delírio absurdamente queer

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Milan Kundera, da Brincadeira à Insignificância": um filme sobre o legado de Milan Kundera

Milan Kundera é um autor envolto em mistério. Não aparece em público e, em 30 anos, não deu uma única entrevista pelo que apenas podemos conhecê-lo através do seu trabalho. Os seus ensaios e reflexões filosóficas são muito reveladores. Este filme, além de outras questões, leva-nos a interrogar: O que é que na obra de Kundera, o elevou ao estatuto de autor lendário? O que há de tão único nos seus livros? Ajudando-nos neste trabalho de investigação, está um estudante que tem uma fantástica oportunidade para conseguir uma entrevista. Após semanas de espera, num café à porta da casa de Kundera, enquanto lê as suas obras, começa a identificar-se com algumas das ideias do autor. É através deste estudante que começamos a perceber melhor a mensagem de Kundera, como e porquê que as suas estórias continuam a emocionar-nos e que pensamos, não apenas nos protagonistas, mas também em nós próprios. Milan Kundera nasceu a 1 de abril de 1929, em Brnö, na antiga Checoslováquia. Em 1975, fixou-se em Par

MOTELX 2022 - Os Filmes Vencedores da 16.ª edição

"Vórtice", de Guilherme Branquinho, é o grande vencedor do Prémio SCML MOTELX para melhor curta-metragem portuguesa, na 16.ª edição do MOTELX. "Speak No Evil", do dinamarquês Christian Tafdrup, arrecada o Prémio Méliès d’argent para melhor longa-metragem europeia. Já são conhecidos os vencedores da 16.ª edição do MOTELX, que desde 6 de Setembro tem mostrado o melhor do cinema de terror nacional e internacional, num ano surpreendente e repleto de público e de fãs. O Festival termina hoje com alguns dos filmes da programação já exibidos e, pelas 21h15, com uma nova oportunidade para assistir às melhores curta e longa europeias. Foram anunciados, na noite passada, durante a Sessão de Encerramento da 16.ª edição do MOTELX, na sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge, os vencedores das 5 competições do Festival. O Prémio SCML MOTELX - Melhor Curta Portuguesa 2022 - a maior distinção concedida em Portugal para curtas-metragens (5.000€), com o apoio da Santa Casa da Mis

Dario Argento regressa ao MOTELX para apresentar o seu novo filme “Dark Glasses”

O mestre do terror italiano, o realizador Dario Argento , regressa ao MOTELX para a 16.ª edição do Festival, que decorre entre os dias 6 e 12 de Setembro, no Cinema São Jorge . O mote é a estreia nacional de “ Dark Glasses ” (Itália, França, 2022), o novo giallo do realizador de culto, que recupera as marcas autorais do seu legado e assinala o reencontro com a filha Asia Argento no grande ecrã. O cineasta, que foi convidado especial há precisamente 10 anos, na 6.ª edição do MOTELX, é ainda protagonista de uma masterclass onde vai abordar os seus processos criativos, completada por um Q&A com a plateia e por uma sessão de autógrafos, durante o Festival. Para Pedro Souto e João Monteiro, os directores artísticos do MOTELX, Dario Argento “é a maior lenda do cinema europeu de terror, que teve uma tremenda influência no cinema norte-americano e continua a ser uma referência para muitos cineastas, basta lembrar o recente remake de “Suspiria” ou o papel de protagonista no último filme de